sexta-feira, janeiro 19, 2007

A mulher invisível


foto: Josivan Rodrigues
Há mais de década faço como rotina de certos fins de tarde a certos fins de noite, visitas ao bar de um amigo, localizado na Praça Maciel Pinheiro, no bairro da Boa Vista. Centro do Recife. Consta, vez ou outra que eu seja visto de passagem por lá. E tão certo quanto a ida é o caminho que faço de volta pela Avenida Conde da Boa Vista, quase sempre madrugando pela vereda em penumbra, repetindo palavras; assobios na cabeça.

Durante todos estes anos tem estado presente, assinando a paisagem na margem esquerda do caminho, uma mulher negra, como se diz. O tempo sentada sobre caixas de papelão abertas, ladeada por sacolas plásticas na calçada da antiga escola dos maristas. Numa noite recente passei mais próximo a ela. Ouvi bodejar frases soltas, palavras fortes, arrumando seus mantimentos a fim de se deslocar para outro lugar perto dali.

Parei um pouco e conversamos por breves instantes. Numa modorra, sem que interrompesse os seus afazeres, ela me atendeu. Disse chamar-se Janaína. Segundo afirmou: a rainha do mar. Junta dinheiro desde 1986 para voltar a Salvador, sua cidade natal. Com um histórico de violência por parte dos homens que passaram pela sua vida, vive sozinha. Ali é a sua casa em Recife. Já é do Recife. Cidade do signo de peixes. Relatou que durante o dia é tudo calmo, não é incomodada. Ela não enxerga ninguém e ninguém a enxerga. Mas quando é noite pode correr o risco de chegar alguém e acordá-la. E ela não gosta que a acordem.

Demorou pouco, em monossílabos finais se dispersou encerrando nosso colóquio. Atravessou a avenida serena, concentrada, olhou para os lados, envolta em molambos. Fiquei parado por alguns segundos, antes de sair assobiando baixo uma toada de Angola que conheço, pensando um pouco quem sabe sobre quantas abolições seriam necessárias a um país como o Brasil.

Saudei em mente o meu fascínio pelas maiorias; a afeição que desde cedo nutro pelos desconhecidos, pelos anônimos não notados. Os rejeitados. Marcados pela tinta violeta da indiferença daqueles que passam apressados, quase ofegantes pela vida, tentando cumprir as metas e demandas seríssimas dos próprios umbigos.

Prossegui quase peripatético comigo mesmo. Passeei um pouco mais, recitando frases, rumo a um ponto de ônibus na Praça do Derby, deixando o bairro da Boa Vista para trás a dormir, se cobrindo pela distância nas minhas costas - junto com Janaína, a rainha das ruas, inquilina das calçadas públicas. A mulher invisível.
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Walter Ramos de Arruda (1976) nasceu em Recife, é graduado em Letras. Mestrado em antropologia. Vive escrevendo.

Crônica enviada pela professora Graça Graúna para leitura (e que nos preparemos para comentá-la, se possível, no dia 23/01, na Capacitação).
Bjs para todos.

5 comentários:

Anônimo disse...

obrigada, Karina:
fico muito feliz por sua versatilidade. O Walter também ficará feliz com a divulgação da crônica dele.Infelizmnte não consegui editar a imagem da "mulher invisivel" na página do projeto. Conto com a sua ajuda pois não domino todas as ferramentas de edição. Bom trabalho para todos e todas. Paz e bem
Graça Graúna

Anônimo disse...

Karina:

Em tempo mais um detalhe importante.Assim que possível notifique o crédito da foto que ilustra a crônica do nosso amigo Walter. A foto é de Josivan Rodrigues.
Paz e bem Graça Graúna

Anônimo disse...

eu estava lendo a cronica, quando meu irmao chegou ao lado do comptutador, viu a foto e disse "a mulher nao tem rosto?". realmente esta imagem pode nos trazer muitas reflexoes sobre a condiçao humana dessas pessoas. "a mulher invissível", a mulher sem rosto. Justamente, onde encontramos os traços de humanidade de uma pessoa, nao é na face. onde está a face dessas pessoas. será que nao conseguimos mesmos enxergá-las como nossos proximos que precisam nós. almenos poderíamos refletir sobre a condiçao humana, se as enxergássemos.Tambem paresse que nao consideramos nem a cor delas. mas passamos indiferentes.

ass Naydilla.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

seu comentário a respeito da "mulher invisível" (uma crônica de Walter Arruda) é mesmo de arrepiar. Você foi direto à essencia dos Direitos Humanos.

Obs: no momento estou com Karina, numa lan house, aqui no bairro da Varzea, em Recife, não a Veneza Americana, mas a veneza das mulheres invisíveis.
Bjos, paz e bem
Graça Graúna

outra observação: alguem, vindo não se sabe de onde, entrou de gaiato em nosso blog. Mas sou eu, sua professorina que está nesta paragem, neste exato momento. Portanto, desconsidere o tal Jr.